terça-feira, 30 de novembro de 2010

O Homem de Gelo Derretido




JUNHO DE 2002

O cara era testudo, moreno e feio. Olhou para seu lado direito uma vez e depois para frente, antes de iniciar um pique de meia dúzia de passos em velocidade ascendente até martelar a bola, sem garantias de que a trajetória não seria interrompida por uma luva. Minha única certeza durante aqueles milesegundos era: "não queria estar na pele do Rivaldo".
E nem era um momento tão mortal. Era a primeira partida da Copa do Mundo contra a Turquia; em derrota, haveria como recuperar pontos contra Costa Rica e China. O nervosismo de estreia e o fato de o pênalti ser decisivo para desempatar o jogo nos últimos instantes foram suficientes para eu me sentir incapaz de chutar aquela bola com um pingo de confiança de que ela não iria acertar um refletor.

Um dos grandes futebolistas mundiais era conhecido como Homem de Gelo. Quando Denis Bergkamp dominava a bola de frente para o goleiro, ele parecia pausar o jogo para, tranquilamente, dar um peteleco certeiro na bola. Para reforçar o apelido, nem comemorava. Sua expressão entre os segundos antes e depois do gol não sofria alteração perceptível nem sob leitura a laser.

Mas a vida é uma caixinha de surpresas, eim Joseph Climber. E eu também já tive que bater meus pênaltis.





JUNHO DE 1999

Se eu tivesse sido abduzido por um ET ao menos eu teria uma explicação plauzível para o fato de, do dia para a noite, ter sentido vontade de entrar no time de vôlei do Cesep. Dadas às raríssimas vezes em que eu havia praticado o esporte até então, logo me vi inapto a estapear a bola durante um pulo, nos treinos. Ou eu acertava o vento durante minha ascensão ou batia com o pulso, depois do ápice. Tal qual numa primeira aula de direção, achei que nunca conseguiria. E assim como na direção, consegui.


SETEMBRO DE 2000


Ao, finalmente, adquirir a habilidade de colocar pressão suficiente na bola a uma altura que ultrapassasse a da rede, os Jogos Estudantis Paraenses (JEPs) já haviam começado. Após a primeira partida, me senti enciumado de o meu time ter conseguido ganhar do Ulisses Guimarães sem mim - eu me recuperava de uma fissura no polegar esquerdo.

Recordo-me apenas de duas coisas no segundo jogo: o time adversário era inacreditavelmente ruim e eu já conseguia bater na bola durante o auge do meu pulo. Tal coincidência foi suficiente para nosso triunfo.

Da terceira partida lembro-me tão pouco que, na verdade, nem sei se ela existiu. Só sei que passamos às  quartas-de-finais para enfrentar o Colégio Estadual Antônio Lemos (Ceal). Na ocasião, além de fazer coincidir o ápice da minha mão com o da bola, eu já conseguia tirar um pouco do bloqueio. O problema era o fantasma do passado. Nos dois anos anteriores o Cesep fora eliminado dos JEPs nas quartas-de-finais, mesmo com times bem melhores que o nosso.

O jogo se encaminhou para um empate até que o ponto da partida ficou nas mãos do Ceal. Eles contra-atacaram cruzado, não muito forte, mas bem colocado. Foi na minha direção. Se eu errasse, o time estaria fora. Acertei uma recepção espírita e inédita: aparei a bola com o antebraço esquerdo. E em vez de a bola tomar uma trajetória obscura como o de costume, ela correu para perto do levantador. Viramos de forma épica e, assim como os algozes do Cesep em 1999, comemoramos com um "montinho".



Nos sentimos mais ou menos assim

A alegria era tão grande que, quando nos encontrávamos no colégio, nos sentíamos como gladiadores que ganharam a luta contra leões mordendo-lhes a jugular. Certo dia, na saída, um colega de time se despediu da namorada e veio falar comigo: "não sei o que é melhor: se namorar ou ser semi-finalista dos JEPs!". Eu, então contando 17 anos e zero namoros, achei aquela comparação ridícula. "Claro que é melhor ser semi-finalista, otário!", gritei dentro de mim.

Da semi-final, só boas lembranças. Me vi capaz de direcionar a bola para a esquerda e para a direita, extraindo razoável potência dos escassos músculos da minha destra. Com a vitória, o nível de serotonina no nosso cérebro aumentou ao ponto de nos levar a um estágio posterior ao nirvana, em que já começávamos a visualizar algumas das 72 virgens.

A verdade é que quem nos aguardava eram machos, e todos bons de bola. E remover montanhas deveria ser um exercício de fé prévio obrigatório ao de crer que venceríamos um dos times que disputavam a outra semi-final. Souza Franco ganhou da Escola Técnica e minha família toda foi assistir a final.

Entre meus três irmãos, o Victor foi o mais interessado na partida, por ter sido tripulante do time cesepeano naufragado do ano anterior. Ele estava ansioso para confirmar que eu já conseguia fazer boa recepção e raramente errar uma cortada, como lhe garanti. Afinal, ele foi testemunha ocular da minha ausência de habilidades durante os primeiros treinos, no ano anterior, e sabia água não se transforma em vinho todo dia.

A vitória tranquila no primeiro set mostrou que eu falava a verdade. Nesse jogo - e apenas nesse - adicionei a habilidade de enxergar previamente onde havia espaço para cortar: se entre o bloqueio, à esquerda ou à direita. Eu sei que antes eu já escolhia o lado, mas era um lance de fé. Agora não, eu via antes de cravar.


Isso, Filipe. Tira do bloqueio.

Só que a fé fraquejou. Minha mente não conseguiu sustentar aquela vitória parcial. Eu não acreditava que nosso time estava ganhando do Souza Franco, que antes parecia ser tão superior. Daí, eu e o resto da minha equipe desandamos a errar e o máximo que arranjamos foi um tie break.

Mas o lance que me derrubou ocorreu antes. Conseguimos uma boa cortada, eles recepcionaram de maneira precária e o levantador só fez jogar a bola de forma aleatória para o alto. Daí, o melhor jogador deles veio correndo e gritando "aaaahhhhh!" pela quadra inteira. Naquele instante vimos que não convenceríamos nem como cosplays de gladiadores. Aquele sim era o Maximus. De uma bola tortíssima o cara extraiu uma cortada tão potente que nos surpreendeu o fato de não ter aberto uma cova na quadra.

O set decisivo chegou a estar 13 x 13, até errarmos um saque. Eles sacaram, recebemos bem a bola e o levantador a ajeitou no meio pra mim. Eu atacava pelas laterais e pelo meio, mas preferia mil vezes o meio. Era muito mais fácil porque havia mais espaço para olhar e cortar. Moleza.

Seria moleza se não significasse uma espécie de pênalti de Copa do Mundo nas minhas mãos. E sem um controle remoto bergkampiano. Dei as passadas prévias. Saltei faminto. Era tanta a vontade que descoordenei sutilmente o tempo do pulo com o da viagem da bola. Girei o braço com violência, mas acertei a bola apenas com os dedos. A esfera seguiu em altitude constante até o infinito e além (por infinito e além, entenda-se arquibancada).


Eu sei, meus detratores dirão que é 20º lugar...


NOVEMBRO DE 2010

Exceto pela estupidez de desperdiçar uma bola fácil por conta do descontrole emocional que culminou em excesso de vontade, no fim das contas fiquei feliz. Ao analisar das fraldas ao túmulo de minha vida esportiva como atacante de vôlei, seria uma extravagante auto-flagelação avaliar tudo com saldo negativo. Contudo, ser responsável pelo choro de alguns colegas de time provou que o único motivo por que eu poderia ser chamado de Homem de Gelo é de ter "gelado" na hora H.

O episódio até me ensinou que, se você é Roberto Baggio em vez de Rivaldo, é menos arriscado se profissionalizar na organização de letras em páginas de jornal.


xxx


MENSAGEM CARINHOSA AOS COLEGAS DE TIME: João Augusto, Maurício Salsicha, Rodolfo, João Paulo, Paulo Pretz, Miro e o resto...


FOI MAL

3 comentários:

João Raiol disse...

Lembro desse dia...
sem contar que o árbtiro, que estava alterado alcolicamente, se podemos falar assim, descontou um pponto nosso...
uma bola com mass de 1 metro para fora ele marcou ponto cpntra a gente. E essa última bola...tinha pedido para o Rodolfo, o homem das cavernas, levantar...já sabia o timing do bloqueio deles...e o pajé, vugo Bruno(era esse o nome dele? amarelou...hehehe....só que o Cara de moeda, vugo Miro falou : VITINHO...levanta p Vitinho...daí...vimos no que deu!!
ZIMBALADAUE!!!!!! é nós e nem lembro da minha medalha!! hauhauhaua

Rafael Faraon disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rafael Faraon disse...

Eu lembro desse dia tb. Só que dá arquibancada.

Eu também não estava acreditando que tu estava conseguindo bater na bola bem daquela jeito.... eheheheh

Mas isso aí, não dá para acertar todas.

Joguei este campeonato 2 anos antes por este time e não lembro de nada... ahahahahha

Ótimo texto.