terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Crônicas de Nada: A aula inaugural do Capitão Nascimento




Depois de largar as funções de chefe do Bope e secretário adjunto de segurança, já predominavam os fios de cabelo branco nas laterais da careca do Capitão Nascimento. É claro que ele se aposentou como coronel, só que as pessoas continuavam chamando o cara de capitão. Essa foi a única injustiça contra a qual ele cansou de se queixar.

Por isso, Nascimento se apresentou como Capitão mesmo à sua turma de cursinho da Polícia Federal, em Belém. Tinha acabado de se aposentar e, como bom Chuck Norris cover, ficava todo empolado só de pensar na possibilidade de ficar em casa criando uma casca no saco de tanto coçar, sem ter o que fazer. Por isso o emprego de professor.



Depois de deixar claro que não tiraria foto com ninguém, prometer que daria uma passadinha na Terra Firme e de dizer que não conhecia nenhum tal de Éder Mauro, Capitão Nascimento começou a aula com um discurso típico de auto-ajuda. Só que invertido.

- Daqui percebo uma coisa: os senhores são todos uns fracassados. É claro, se estivessem no emprego dos sonhos, não precisariam se humilhar sentando de novo o cu nessas carteiras vagabundas. É isso, todos  ganham bem menos que os R$ 7,5 mil do edital. E o pior é que aqui na sala só tem de meia idade pra cima.

A turma arregalou os olhos e engoliu seco. E o capitão continuou:

- Pra começar, temos que deixar logo claro que quase ninguém dessa sala aqui vai passar. Aliás, provavelmente ninguém. No concurso passado, só foram aprovados pro teste físico 13 pessoas de Belém. E mesmo que alguém passe, o que adianta? A tia lá atrás, por exemplo, - aponta pra uma dona de casa gordinha, no fundo da sala - aposto que não aguenta correr nem 500 metros.

A mulher fica com vergonha e olhos se enchem de lágrima.

- Se eu fosse vocês, nem perderia tempo com essa merda. Vão pra casa ver Big Brother. Por que não fazem um curso de culinária? E tu, viadinho - aponta pra um rapaz que vestia colete à Carlos Minc - é tu mesmo aí, com cara de boiola. É melhor ir se requebrar em uma boate gay, porque tu não aguenta nem uma semana no curso de formação.

Com essa, a tia arrumou as coisas com as mãos tremendo e saiu chorando da sala.

- Estão pensando que é assim, vão passar no concurso e aí é só vida boa mamando nas tetas do estado? Esqueçam! Os aprovados vão ficar em área de fronteira por pelo menos três anos, sabiam? Lá não tem ninguém gritando "manhê, acabei!" depois de cagar.

A essa altura, um terço dos alunos já tinha saído da sala. Satisfeito, o Capitão Nascimento decidiu começar efetivamente a aula.

- Peguem seus cadernos e anotem. Na aula de hoje os senhores vão aprender o conceito de estratégia. Em grego, strategia, em latim, estrategia, em francês, estrategie...

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Crônicas de Nada: A Fuga



É um momento tenso. Um movimento em falso e já era.

O ideal é fazer o trajeto de noite; a escuridão favorece o fugitivo. Mas não é tudo. É necessária técnica - o que apurei com anos de treino. Só que não há habilidade que garanta o êxito. A gente sempre tem que contar com um pouco de sorte.

O princípio básico é você fingir ser qualquer um, apenas um na multidão. Pokerface mesmo, sabe? Esse é até meu ponto fraco. Só jogo poker pela internet. Não adianta nada.



Mas dou a largada. Começo com o primeiro passo na calçada. Há pessoas passando. Carros, ônibus, motos. Dobro à direita e sigo adiante. Aí entra o passo número dois: o jeito de caminhar. Nem penso em apertar o passo, andando para o chão. Eles farejam de longe os apressados. O segredo é a naturalidade. Como em uma dança, meu ritmo tem que ser igual ao de todos no salão - nesse caso, da rua.

A ansiedade atrapalha. Eles identificam tensão em um raio de 1,5 quilômetro. Se exalar de você, "crau".

Dobro à direita de novo, desvio de dois buracos do chão. Começo a me flagrar tenso e olho no relógio, pra disfarçar. Olho de boa, sem parecer apressado. Tento caminhar meio gingado, feliz. Já venci metade do caminho, mas ainda não há nada garantido.

Eles estão no outro lado da rua. Eu sei disso porque estão sempre lá. Não posso olhar, seria fatal. Eles me veem, mas não chamo atenção, faço parte da paisagem deles. Sou como um carro, uma velhinha segurando um bebê, um cachorro que passa. Apenas ando.

Quem chega a este ponto sem ser observado já tem grande chance de êxito. Isso se já não estiver sendo seguido, claro. Mas não posso olhar para trás. Se me seguem, perdi, não há o que fazer; se não, devo apenas ir adiante com o plano. Suo frio. Meu suvaco começa a ficar melado, mas ninguém percebe.

Passo por um trecho mais escuro, embaixo de umas árvores, fico mais tranquilo. Desvio de uma mesa e algumas cadeiras. As pessoas estão conversando naturalmente. Olham-me, mas não me veem. Melhor assim. Alguém atento perceberia que minha blusa já está suada no suvaco. Faltam só uns dez passos.

Cheguei, agora é agir rápido. Ligo o carro, engato a primeira e arranco logo. Só depois ligo o farol, coloco o cinto de segurança e baixo os vidros. O sangue desce do corpo, os músculos relaxam. Olho-me no espelho do carro, orgulhoso, e falo pra mim mesmo: parabéns, você acaba de economizar um real do flanelinha.