domingo, 26 de outubro de 2008

Precisa-se de um herói


Tatuagem num braço, cicatriz noutro, ambos gesticulando muito e uma voz grave, anasalada e cheia de sotaque, contando estripulias que pareciam ter sido feitas no Afeganistão, durante a invasão dos Estados Unidos, há uns seis anos.

- Oh, man, teve uma hora que eu fiquei sozinho, cercado de enemies, com tiros de todos os lados.
- Sério?
- Sério. Pior que só estava com uma pistola, enquanto que os caras andavam para cima e para baixo com metralhadoras.
- Não brinca!
- Yeah, its true...

E assim, o americano Steve continuava falando de suas aventuras, enquanto que a platéia na parada de ônibus começava a ficar atenta ao papo. A velinha, apoiada na sombrinha como se fosse uma bengala, esticou o ouvido para não perder nada. O estudante de baixa estatura, que carregava seus livros e caderno alternando entre o braço direito e o esquerdo quando um deles cansava, ficava impressionado à medida com que o grandão falava de sua coragem.

Quando o papo começou a ficar sangrento, quase todos os donos dos 45 ouvidos que escutavam a conversa (uma das pessoas tinha a orelha amputada) fizeram cara de nojo.

- Eu vi um dos nossos caras ser espancado com punches n kicks e uma barra de ferro quente no...ear...

- Orelha

- Yeah, orelha

- Ughnrr!! - exclamou o desorelhado - eu sei como é isso!

Neste momento, uma dona-de-casa tapou com as mãos os ouvidos de sua filha e saiu de lá reclamando.

Indiferente ao grunhido e à reprovação da senhora, o gringo continuou falando de sua aventura. Dessa vez, com a voz ainda mais grossa e em tom de suspense, disse quando foi notado, escondido atrás de uma mureta, pelos torturadores.

O coração da platéia começou a bater forte. Uma freira até fez o sinal da cruz, com medo do que iria acontecer com o contador da história, ignorando que o cara estava ali, vivinho da silva. Já haviam passado três de seus ônibus, mas ela preferiu ficar ali para saber o desfecho.

Avesso àquela bagunça que se formava, Steve cortou bruscamente a história, dizendo ao seu amigo que seu ônibus já vinha passando. O amigo concordou, mas, antes que conseguisse se despedir, foi interrompido pelos protestos dos 62 ouvidos que escutavam atentamente a história (a essa altura o desorelhado já tinha pego seu ônibus).

Puxando a manga de sua camisa, dezenas insistiam que ele continuasse falando. Mas o cara só cedeu mesmo porque a galera fez uma barreira humana de forma que o motorista do ônibus nem conseguiu ver seu sinal.

"Como você conseguiu escapar?" e "você tem alguma seqüela da guerra?" eram as perguntas mais frequentes. Ao ver que outro ônibus vinha passando, já meio sem paciência, porque estava atrasado para o trabalho, Steve resolveu desfazer o mal entendido e foi direto ao assunto:

- Nessa altura, o diretor gritou "corta! corta!" e me dispensou, porque achou que eu não servia para o papel.
- Aaaaaaaah! Fala sério, não desconverse! A gente quer saber o que aconteceu lá quando você estava lá! - Gritou um baixinho lá do fundo, endossado pela galera da frente. Ninguém queria acreditar que tudo aquilo fora mero enredo de filme.
- Foi mal, people, i gotta go - disse, enquanto subia os degraus do ônibus, já impaciente com aquela aglomeração.

O mesmo baixinho foi se enfiltrando pelo meio do pessoal até conseguir subir no mesmo ônibus, já em movimento. Todo mundo estranhou, mas ele justificou:

- Eu já perdi minha aula, mesmo...

Assim, sem querer, o baixinho acabou estimulando muita gente a mudar de rota e entrar no mesmo coletivo, só para continuar ouvindo a história. Ao ver que não conseguiria se livrar daqueles carrapatos, Steve resolveu radicalizar. Já que ninguém queria acreditar que a história era apenas o teste de ator para um filme, o que era a mais pura verdade, ele passou a inventar mil aloprações. Mas, em vez de as pessoas desistirem de perturbar, só ficavam ainda mais hipnotizadas.

- Aí uns dez afegãos me agarraram, mas eu consegui me livrar de todos. Eu só tinha cinco munições, mas foi o suficiente, porque cada um dos tiros atravessou um dos soltados e parou no outro - inventava.
- Nossa, ele é bom mesmo! - exclamou o baixinho, mais uma vez reforçado pelos demais passageiros.

A perseguição continuou durante toda a viagem e, o que eram 62 orelhas escutando, ao descer do ônibus passou a ser 87 (o desorelhado, que andava por acaso próximo à parada do trabalho de Steve, resolveu se juntar novamente). Da parada até a fachada do órgão público onde Steve trabalha, formou-se praticamente uma procissão. E ninguém se desestimulava pelo fato de as histórias ficarem cada vez mais mirabolantes.

- Daí eu abati um helicópter com um estilingue - disse o aspirante a Chuck Norris.

- Meu herói! - fala uma mocinha de uns 15 anos, já até pedindo autógrafo.

Entrar no trabalho sem aquela turba descontrolada, para Steve, foi como tirar 200 quilos das costas. Durante a manhã toda, ele pôde se concentrar no trabalho e esquecer o que acontecera mais cedo. Só que, por acaso, enquanto estava almoçando, olhou pela janela e notou que os tresloucados ainda estavam lá, em frente ao seu trabalho. Pior, em número muito maior.

Por alguns minutos, Steve se sentou atônito, desejando ter um helicóptero para voltar para casa sem contato com aquele bando de loucos. Mas, de repente, ele refletiu um pouco e decidiu parar de remar contra a maré. Ao sair do trabalho, fez umpronunciamento quase solene à multidão que lhe esperava.

- Gente, vocês sabem que eu estou cansado e preciso ir para casa...

- Aaaaaaaaaahhhh!!! - exclamou a multidão, antes que ele pudesse completar a frase.

- Mas, calma. No próximo sábado eu vou continuar contando sobre quando eu acertei com minha pistola um afegão a um quilômetro de distância - disse, já se acostumando com o cinismo, já que sua pistola não tem alcance nem de 400 metros. - A entrada vai custar só cinco reais. Levem seus amigos.

Ao dizer isso, o americano entrou com uma certa dificuldade em um táxi e voltou para casa.

No dia marcado, o número de pessoas que foi assisti-lo contando sua fictícia história no Afeganistão era tão grande que ele teve que, em cima da hora, negociar um outro salão maior, para que todo mundo pudesse entrar. Ainda teve quem ficasse em pé, mas não quem saísse insatisfeito.

Semana após semana o número de pessoas aumentou tanto que o preço do ingresso aumentou para R$ 10 e depois para R$ 15. Steve chegou a fazer duas sessões, antes de alugar um espaço para 4 mil pessoas sentadas. Em pouco tempo, já estava dando entrevista na TV e até recebendo medalha de honra na Assembléia Legislativa.

Também não demorou para que ele tivesse a idéia de se candidatar como vereador da cidade, tal o sucesso. Ao final dos quatro anos de mandato, resolveu concorrer à prefeitura. O vice de sua chapa era o mesmo desorelhado, que agora fazia parte da história - passou a ser ele o suposto soldado torturado pelos afegãos.

A ascensão de Steve não ocorreu sem dificuldades. Surgiram rumores - vindos da oposição, claro - de que tudo não passava de uma farsa e ele nunca tivesse participado da guerra no Afeganistão. Nada que abalasse sua meteórica carreira. Para a maluquice do povo, só um herói retardado.

3 comentários:

Anônimo disse...

muito bacana.Ass: Breno Troccoli

Rafael Faraon disse...

Na boa, o que tem haver 45 ouvidos com uma orelha amputada? ;-)

Danillo disse...

uhahuauhuha Mayday! Heads down! GRENAAAAAAAAAAAADE!

Steve... Gente fina esse cara...
Sou amigo dele.